Pan-Hispanic Ballad Project

Total: 1


0470:1 Ricardo soldado francés (estróf.)            (ficha no.: 2772)

Versión de Fazenda das Flores (isla de As Flores, Açores, reg. Açores, Portugal).   Recitada por Jerónimo Gonçalves Trigueiro (72a). Recogida en Stoughton, Massachusetts por Manuel da Costa Fontes, 24/02/1978 (Archivo: ASF; Colec.: Fontes NI 1978). Publicada en F.E.R. L-B Nova Ing. 1980, nº 226. Reeditada en Costa Fontes 1997b, Índice Temático (© HSA: HSMS), pp. 242-244, T4.  188 hemist.  Música registrada.

     Uma história vou contar    que me contou as senhoras Martas:
  2   um soldado a ouvir missa    por um baralho de cartas.
     E podem acreditar    que isto aconteceu;
  4   nada ganhava em mentir    quem estes versos escreveu.
     Quem não anda nada sabe,    pouco pode aprender;
  6   pois o que se passou,    o que os versos vão dizer,
     foi passado num domingo;    estava o regimento inteiro.
  8   Pois um caso igual a este    creio que foi o primeiro.
     Estava com todo o respeito    quando tudo ajoelhou;
  10   um soldado muito sério    um baralho de cartas puxou.
     Com elas se adevertia,    não precisava parceiro;
  12   fingia que estava jogando    com mais outro companheiro.
     Era tal bater cartas    que fazia u~a estalada;
  14   ele, todo sério e sisudo,    não lhe lembrava mais nada.
     Por ser dentro da igreja    ficou tudo ademirado,
  16   mas para o fim vão ouvir    a lembrança do soldado.
     O sargento quando tal viu    as cartas mandou guardar;
  18   ele fez-se surdo e mudo    e continuou a jogar.
     Regressaram ao quartel,    era um grande batalhão;
  20   o sargento quando chegou    fez queixa ao capitão.
     O capitão quando tal soube    mandou chamar o soldado,
  22   dizendo a toda a pressa:    --Há-de ser bem castigado.
     Venha cá esse maroto,    esse maldito sujeito;
  24   vai sofrer grande desgosto    por ter faltado ao respeito.--
     Chegou ao pé do capitão    com uns modos de cativar:
  26   --Aqui estou, meu capitão;    diz que me quer ainda castigar?
     --Ainda falas em castigo!    Hei-de levar tudo a eito,
  28   não deixar de passar    a tua falta de respeito.
     --Se soubesse a minha vida,    meu senhor capitão,
  30   ia roubar para me dar    e não lhe chamavam ladrão.
     Eu tudo lhe vou contar,    o que sinto no coração;
  32   as cartas me serviam    de livro de oração.
     É assim, meu capitão,    como lhe estou a contar;
  34   por ter falta de dinheiro    não pude o livro comprar.
     Dirá que eu sou finório    com a minha explicação,
  36   mas nas cartas vou rezando    os actos da religião.
     Se acaso me dá licença,    já lhe digo como é;
  38   é bom de tudo em tudo    nós não perdermos a fé.
     --Diga lá, quero ouvir,    não se ponha a empalhar;
  40   eu quero ver a maneira    como me quer enganar.
     --Digo a pura da verdade,    não falo por empalhação;
  42   é por falta de dinheiro    que faço esta devoção.
     Digo ao meu capitão    e a outro qualquer que seja:
  44   o ás representa um só Deus    e também uma só Igreja.
     E assim lhes contarei    pelo que tenho visto;
  46   os dois me representam    duas naturezas de Cristo:
     a divina e a humana,    com tudo me aconselho;
  48   até os dois testamentos,    que é o novo e o velho.
     Os três é as Três Pessoas    da Santíssima Trindade;
  50   veja lá, meu capitão,    se eu estou faltando à verdade.
     E as três potências da alma    e as três virtudes cardeais;
  52   lá no meu pensamento    não pode significar mais.
     Os quatro são os novícios do homem    e os quatro evangelistas;
  54   isto está bem entendido,    nem pelos melhores artistas.
     Os cinco são as cinco chagas    que passou Cristo por nós;
  56   ninguém dirá a maneira,    quem ouvir a minha voz.
     Os cinco, sentidos corporais,    e as cinco cidades abrasadas;
  58   diz a escritura segrada,    porque foi em eras passadas.
     Os seis são os dias da semana    em que Deus formou o mundo;
  60   tudo pela sua mão,    abaixo não há segundo.
     Os sete são os pecados mortais,    deixou-os a todo o vivente;
  62   também muitos veniais,    os pratica toda a gente.
     E as obras de misericórdia,    que são sete corporais,
  64   e no fim formam catorze    com as sete espirituais.
     Ainda os sete têm mais u~a    que me lembra a toda a hora:
  66   significa as sete dores    que teve Nossa Senhora.
     Quando chego a contar oito    lembro-me as bem-aventuranças;
  68   e o dilúvio universal;    não perco as minhas esperanças.
     Vou andando para os nove:    só me lembro os poetas
  70   que enganaram o povo;    que cabecinhas discretas.
     Dez são os dez mandamentos    que nos manda a lei de Deus;
  72   esses que bem os guardarem,    os proveitos são todos seus.
     O rei é o Rei dos Céus    a quem devemos obedecer,
  74   a quem devemos adorar    e nunca nos esquecer.
     E a dama é a rainha,    a Virgem Nossa Senhora,
  76   que, rainha dos céus e da terra,    nos está vendo a toda a hora.
     As cartas têm doze figuras,    nada mais tenho que contar:
  78   significa os doze apóstolos;    isto está bem a acertar.
     Não há mais quem lhas diga;    veja lá, meu capitão,
  80   a maneira que as cartas    são os meus livros de oração.
     --Já vejo que és esperto,    és um discreto rapaz;
  82   conta bem, que ainda deixastes    uma das cartas atrás.
     --Eu bem sei: é o valete    ò o burro, como lhe chamamos;
  84   quando lhe ponho a albarda    muito bem o carregamos.
     O valete é a valentia    que tem o meu capitão;
  86   tem força como nenhum    para aguentar um cidadão.
     O valete é o burro,    são os nomes que lhe dão;
  88   mas é só uma figura,    ela mesmo, meu capitão;
     o burro, meu capitão,    se acaso me dá licença,
  90   significa o sargento    que me trouxe à sua presença.--
     O capitão gostou muito    do rapaz assim falar,
  92   ficando muito contente    e não o foi castigar.
     Deu-lhe um mês de licença    para ele ir passear,
  94   nem por muito aprender,    nem por por muito estudar.

Nota del editor: «Lido por Jerónimo... de um caderno que escreveu há muitos anos». Título original: O BARALHO DE CARTAS (ESTRÓF.) Véase A[arne]T[hompson] 1613.

Go Back
Back to Query Form