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Uma história vou contar que me contou as senhoras Martas: |
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um soldado a ouvir missa por um baralho de cartas. |
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E podem acreditar que isto aconteceu; |
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nada ganhava em mentir quem estes versos escreveu. |
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Quem não anda nada sabe, pouco pode aprender; |
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pois o que se passou, o que os versos vão dizer, |
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foi passado num domingo; estava o regimento inteiro. |
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Pois um caso igual a este creio que foi o primeiro. |
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Estava com todo o respeito quando tudo ajoelhou; |
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um soldado muito sério um baralho de cartas puxou. |
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Com elas se adevertia, não precisava parceiro; |
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fingia que estava jogando com mais outro companheiro. |
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Era tal bater cartas que fazia u~a estalada; |
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ele, todo sério e sisudo, não lhe lembrava mais nada. |
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Por ser dentro da igreja ficou tudo ademirado, |
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mas para o fim vão ouvir a lembrança do soldado. |
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O sargento quando tal viu as cartas mandou guardar; |
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ele fez-se surdo e mudo e continuou a jogar. |
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Regressaram ao quartel, era um grande batalhão; |
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o sargento quando chegou fez queixa ao capitão. |
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O capitão quando tal soube mandou chamar o soldado, |
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dizendo a toda a pressa: --Há-de ser bem castigado. |
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Venha cá esse maroto, esse maldito sujeito; |
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vai sofrer grande desgosto por ter faltado ao respeito.-- |
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Chegou ao pé do capitão com uns modos de cativar: |
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--Aqui estou, meu capitão; diz que me quer ainda castigar? |
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--Ainda falas em castigo! Hei-de levar tudo a eito, |
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não deixar de passar a tua falta de respeito. |
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--Se soubesse a minha vida, meu senhor capitão, |
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ia roubar para me dar e não lhe chamavam ladrão. |
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Eu tudo lhe vou contar, o que sinto no coração; |
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as cartas me serviam de livro de oração. |
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É assim, meu capitão, como lhe estou a contar; |
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por ter falta de dinheiro não pude o livro comprar. |
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Dirá que eu sou finório com a minha explicação, |
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mas nas cartas vou rezando os actos da religião. |
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Se acaso me dá licença, já lhe digo como é; |
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é bom de tudo em tudo nós não perdermos a fé. |
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--Diga lá, quero ouvir, não se ponha a empalhar; |
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eu quero ver a maneira como me quer enganar. |
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--Digo a pura da verdade, não falo por empalhação; |
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é por falta de dinheiro que faço esta devoção. |
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Digo ao meu capitão e a outro qualquer que seja: |
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o ás representa um só Deus e também uma só Igreja. |
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E assim lhes contarei pelo que tenho visto; |
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os dois me representam duas naturezas de Cristo: |
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a divina e a humana, com tudo me aconselho; |
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até os dois testamentos, que é o novo e o velho. |
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Os três é as Três Pessoas da Santíssima Trindade; |
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veja lá, meu capitão, se eu estou faltando à verdade. |
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E as três potências da alma e as três virtudes cardeais; |
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lá no meu pensamento não pode significar mais. |
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Os quatro são os novícios do homem e os quatro evangelistas; |
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isto está bem entendido, nem pelos melhores artistas. |
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Os cinco são as cinco chagas que passou Cristo por nós; |
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ninguém dirá a maneira, quem ouvir a minha voz. |
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Os cinco, sentidos corporais, e as cinco cidades abrasadas; |
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diz a escritura segrada, porque foi em eras passadas. |
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Os seis são os dias da semana em que Deus formou o mundo; |
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tudo pela sua mão, abaixo não há segundo. |
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Os sete são os pecados mortais, deixou-os a todo o vivente; |
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também muitos veniais, os pratica toda a gente. |
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E as obras de misericórdia, que são sete corporais, |
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e no fim formam catorze com as sete espirituais. |
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Ainda os sete têm mais u~a que me lembra a toda a hora: |
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significa as sete dores que teve Nossa Senhora. |
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Quando chego a contar oito lembro-me as bem-aventuranças; |
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e o dilúvio universal; não perco as minhas esperanças. |
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Vou andando para os nove: só me lembro os poetas |
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que enganaram o povo; que cabecinhas discretas. |
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Dez são os dez mandamentos que nos manda a lei de Deus; |
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esses que bem os guardarem, os proveitos são todos seus. |
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O rei é o Rei dos Céus a quem devemos obedecer, |
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a quem devemos adorar e nunca nos esquecer. |
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E a dama é a rainha, a Virgem Nossa Senhora, |
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que, rainha dos céus e da terra, nos está vendo a toda a hora. |
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As cartas têm doze figuras, nada mais tenho que contar: |
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significa os doze apóstolos; isto está bem a acertar. |
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Não há mais quem lhas diga; veja lá, meu capitão, |
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a maneira que as cartas são os meus livros de oração. |
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--Já vejo que és esperto, és um discreto rapaz; |
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conta bem, que ainda deixastes uma das cartas atrás. |
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--Eu bem sei: é o valete ò o burro, como lhe chamamos; |
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quando lhe ponho a albarda muito bem o carregamos. |
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O valete é a valentia que tem o meu capitão; |
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tem força como nenhum para aguentar um cidadão. |
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O valete é o burro, são os nomes que lhe dão; |
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mas é só uma figura, ela mesmo, meu capitão; |
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o burro, meu capitão, se acaso me dá licença, |
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significa o sargento que me trouxe à sua presença.-- |
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O capitão gostou muito do rapaz assim falar, |
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ficando muito contente e não o foi castigar. |
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Deu-lhe um mês de licença para ele ir passear, |
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nem por muito aprender, nem por por muito estudar. |