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Em uma grande cidade gentil donzela habitava. |
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Já seu pai perdido tinha, porém pouco lhe faltava, |
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pois um padrasto que houvera por filha sua a tratava. |
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Vai pedi-la um cavaleiro que bem com ela igualava, |
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mas não casam a menina, seus parentes a negaram. |
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Em frente dela aparece mancebo de rasa escada, |
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que do seu lavor vivia, sua casa sustentava. |
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Tanto se querem os dois que co`a vista se falavam; |
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também em certa janela muito bem que se arrostavam. |
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Diz-lhe uma noite o mancebo com bem mágoa de su` alma: |
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--Grande pena me estás dando e a causa vai ser falada; |
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por Dom Pedro estás pedida, homem de grande embaixada. |
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--Não o creias, minha vida, ai não o julgues, minh` alma. |
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Basta que tu sejas homem para cumprir tu palavra, |
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que eu também serei mulher para sair desta casa. |
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Com o pouco que trouveres e o que é meu, de minha arada, |
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muito bem há-de chegar-nos, que eu sou mulher governada. |
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Do que eu herdei de meu pai não podem tirar-me nada.-- |
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Vai-se o mancebo contente, queda-se ela consolada. |
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Subindo aos seus aposentos, na cama já se deitava. |
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Noutro dia, manhã cedo, foi sua mãe a chamá-la. |
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--Desperta, filha querida, desperta, filha adorada; |
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tu casarás com Dom Pedro, senhor de grande embaixada. |
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Pois se acaso eu te morrer, já ficas bem amparada. |
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--Não me metam em cuidados, deixem-me aqui descansada. |
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--Se tu o não queres, filha, é que és doutro enamorada.-- |
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Ajuntaram-se os parentes, fizeram grande ajuntada. |
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Quatro ficaram de dentro, por ver o que se passava; |
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os mais foram para o campo, onde o pobre trabalhava. |
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Descuidado o surpreenderam, deram-lhe sete facadas. |
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Meia-noite fôra em ponto quando a nova lhe chegava; |
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a dama não a acredita, pois a zombar a escutava. |
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Nisto chega o desengano, um sino ao longe dobrava. |
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Quando ela ouvira o sino, seus cabelos arrancara. |
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--Coração que te não partes, que esperança ainda guardas?-- |
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Tinha esta dama uma prima, prima que muito estimava; |
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subira a escada sozinha para ver se a consolava. |
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--Ó minha prima querida, rica prima da minh` alma! |
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Ao que morreu perdoe Deus sua paixão tresloucada. |
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Tu casarás com Dom Pedro, homem de grande palavra. |
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--Não o creias, minha prima, minha prima sempre amada; |
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quando eu daqui sair, hei-de ir logo amortalhada.-- |
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Sua prima tal não crê, de a consolar só tratava, |
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mas reparando em seus gestos a viu muito atribulada. |
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O sangue já lhe corria, que ela a si se apunhalara, |
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e corria tanto e tanto que toda a casa anagava. |
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--Ó minha tia querida, tia, tia da minh` alma, |
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vossa filha está morrendo, está toda ensanguentada!-- |
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Chamem já o confessor, não morra desamparada |
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sem confissão, como foi o vilão que tanto amava. |
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Veio logo um santo frade e, como boa cristana, |
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a sua mãe deixou dito que orasse pela su` alma |
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e do mal-aventurado a quem tanto ela estimava. |
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Cada um em seu caixão, seus enterros se ajuntavam. |
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Ele parecia um cravo, ela rosa desmaiada. |
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Mães que tendes vossas filhas, ai, deixai, deixai casá-las; |
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não lhes tireis seu desejo se as não quereis desgraçadas. |