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****Cândida Virgem dos Mártires, formosa Virgem Maria, |
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estrela do céu fulgente, clara luz do claro dia! |
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Contar todos seus milagres, quem contá-los poderia? |
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De todos o mais patente acha-se aí nessa vila |
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de Castromariam chamada, que já foi de mouraria. |
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É este santo milagre de tal poder e valia, |
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que em Portugal e Castela, e lá mesmo em Barbaria, |
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a quantos bem o conhecem, faz espanto e maravilha. |
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Era um cristão que passava negra vida, que sofria |
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debaixo de duros ferros, lá para as bandas de Arzila. |
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Cativeiro mais penoso outro cristão não havia. |
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O perro moiro infiel, que o comprara em Almeria, |
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por seguro se não dava de que lhe não fugiria. |
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Sempre o maldito do perro, que receoso vivia, |
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maltratar o pobre escravo com ferrenha mão soía. |
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Já invenção lhe faltava de como ele o guardaria. |
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Mandou fazer um caixão muito forte em demasia, |
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e nele sem mais detença o triste cristão metia. |
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Mas por certo `inda o não dava apesar do que fazia; |
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aquela mente maldita de mil receios ardia. |
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Nova ideia de tormento alma lhe enche de alegria; |
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com uma grossa corrente de pés e mãos o prendia, |
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e ainda sobre o caixão o indino perro dormia. |
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Negro pão e água turva era o manjar que teria; |
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mas uma ardente esperança que na Virgem santa havia, |
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vida nova lhe apontava sobre a que lhe já fugia. |
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A Virgem Mãe Soberana invocava noite e dia |
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para que lhe desse n` alma vigor, que se lhe extinguia, |
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e que de todo o livrasse de tão dura escravaria. |
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A santa Virgem dos Mártires, que todo seu rogo ouvia, |
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daquele espírito aflito muito bem se condoía. |
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O caixão que em terra estava, cercado d` água se via, |
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e com o perro do moiro que em cima dele dormia, |
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à tona d` água boiando três dias assim corria. |
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Já despontava a manhã, a manhã de um claro dia; |
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novas areias se mostram, novos céus, outra alegria. |
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Da torre o galo três vezes este milagre anuncia; |
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os sinos do campanário repicavam à porfia |
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sem que ninguém os tangesse porque tudo `inda dormia. |
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O ladrar de muitos cães em todo o mar percutia. |
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Quando o perro ouvira os sinos sobre tudo se doria, |
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que junto de terra estranha, terra que não conhecia, |
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por sua desaventura com seu escravo se via. |
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Encalhado em fina areia o mesmo caixão se abria. |
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Com rosto mais que magoado o moiro ao escravo dizia: |
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--Cristão, que país é este de tão alta senhoria? |
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Na tua terra, cristão, cantam galos à porfia, |
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tocam sinos, ladram cães logo ao despontar do dia? |
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--Esta terra sei que é minha, mas eu não a conhecia. |
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Na minha terra, senhor, cantam galos à porfia, |
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ladram cães, repicam sinos logo ao despontar do dia.-- |
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Assombrado o sarraceno do que do cristão ouvia, |
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sem mais pergunta fazer-lhe, da corrente o desprendia. |
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--Ergue-te, cristão, perdoa-me todo o mal que te eu fazia; |
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até hoje eras meu `scravo, teu `scravo sou neste dia.-- |
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Para ver este milagre toda a gente ali corria; |
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com seus gibões encarnados os da justiça assistiam. |
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Já todos vão, já se partem caminho da santa ermida; |
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o moiro com viva crença o baptismo já pedia. |
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Eis que aos pés da Virgem santa d` água uma fonte se abria, |
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tão cristalina e tão pura que a todos pasmar fazia. |
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Com esta água bendita, água de tanta valia, |
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foi logo ali baptizado o moiro de Barbaria. |
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Baptizado o sarraceno, ao pé da fresca fontinha |
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se formava um lindo mar daquela água que corria; |
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e para maior milagre, ao cabo de sete dias |
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mesmo no meio das águas um verde freixo nascia, |
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que o que mais maravilhava era o ver como crescia. |
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Desde então ficou a Virgem tendo grande romaria: |
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de Portugal e Castela tudo ali corre em seu dia. |