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****Era um rico senhor de mui nobre fidalguia; |
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grandes honras, muitas terras, no meio delas vivia. |
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Se guerras se pregoavam, de tudo mais s` esquecia |
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mas, se não andava em guerra, ai mulheres, ai vilania: |
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a todos ele lograva, com todos se divertia, |
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que, no asar de seus jogos, como senhor, nã perdia. |
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Uma quintã ele tinha, sua coitada baldia. |
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Dos criados que lá eram a um mais que todos qu`ria, |
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tão fiel, com ser malato, que nem zombando mentia. |
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Nos gados que este guardava um boi bragado havia |
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que fizera sete mortes, que, de bravo, nem dormia: |
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lo melhor boi da manada, que seu amo não vendia |
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nem por tanto do dinheiro que la herdade valia. |
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Pois teve má fim lo boi, como ninguém cuidaria. |
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Um vilão de por `li perto, que abastado vivia, |
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só por abastado ser lo senhor lo acolhia, |
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só p`ra chacotear dele, que p`ra mais lo não queria. |
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--Vilão ruim, nada vales-- lo fidalgo lhe dizia. |
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Esse malato do gado tem muito maior valia. |
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Tu mentes por condição, ele nunca mentiria. |
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--Aposto que mentirá antes que passe outro dia. |
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--Aposto minha quintã, mail la coutada baldia, |
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que meu malato fiel a mim não me enganaria. |
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--Eu aposto quanto tenho; vamo-lo ver, senhoria. |
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--Apostado, apostado, vamo-lo ver, vilania.-- |
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Lo vilão, todo sanhudo, a sua casa corria, |
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cuidando polo caminho por que traças ganharia. |
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E logo que lá chegou, tudo à mulher dizia: |
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--Mulher minha, bem lo vês, este caso apressado; |
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vai-me ganhar esta aposta de lanço afortunado. |
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Lo malato da quintã tem um boi a seu cuidado, |
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lo melhor boi da manada, boi que é de cor bragado, |
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que fizera sete mortes, de bravo, sempre acordado, |
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que seu amo não vendia por quanto dinheiro contado. |
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À quintã vai-me nesta hora dar conta do meu recado. |
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Por ti lo malato seja a modo bem conversado, |
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que, morto lo boi, te dê los chavelhos do bragado. |
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--Descansa, marido meu, darei conta do recado; |
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de conversa e chavelhos isso fica a meu cuidado.-- |
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Suas razões bem sabe ela, por que fal` assegurado: |
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malato, quando la via, olhava imbasbacado. |
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Ela de lo ver gostava, por ser bem-posto malato. |
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Foi lo marido com ela `té à quintã ser chegado; |
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ela pola quintã dentro, ele p`ra casa voltado. |
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Lo malato, que l` avista, fica de cor demudado: |
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--Vós, senhora, por aqui, tão longe de povoado? |
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--Venho pedir-t` um favor, meu malato estimado. |
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--Que poderei eu fazer que vos possa ser de grado? |
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--Malatinho, eu te peço los chavelhos do bragado. |
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--Ai, amor, não pode ser! É lo melhor boi do gado, |
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lo mais qu`rido de meu amo, e posto a meu cuidado. |
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--Dize-lhe tu que morreu de quebranto ou d` olhado. |
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--Eu a meu amo nã minto nem mato lo boi bragado, |
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que nunca por mim `té `gora foi meu amo inganado. |
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--Malato dos meus pecados, se queres ser meu amado, |
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dá-me tu lo qu` eu te peço, lo que peças terás dado. |
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--E s` eu vos pedir, senhora, lo que quer um namorado? |
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--Dá-me tu lo que t` eu peço, que terás lo desejado.-- |
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Nã passava uma hora, morto foi lo boi bragado; |
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lo que despois sucedeu nã lo sei p`ra ser contado. |
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Nã sei dizer lo que foi nem que tempo foi passado. |
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Sei qu` ela levou consigo los chavelhos do bragado, |
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e, dando-los ao marido, deu conta do seu recado: |
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--Marido de meus pecados, morto `stá lo boi bragado; |
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p`ra tão bons chavelhos teres, foi trabalho porfiado. |
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--Mas trabalho, mulher minha, trabalho bem acabado. |
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--Fiz diligência, marido, dar conta do meu recado. |
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--Lo malato que nã mente agora `stá apanhado; |
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la verdade nã dirá, e ganhei lo apostado.-- |
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Entrementes, na quintã, malato sem sossegar, |
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como pecador na culpa que nã pode resgatar. |
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--Tenho qu` ir onde meu amo, a seus mandados tomar; |
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mas que lhe vou eu dizer quando do boi me falar? |
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Eu digo: "Lo boi morreu de quebranto ou d` olhar". |
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E, pau de conto na mão, prestes vai a caminhar. |
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Mas, de pernas a tremer, passada nã pôde dar. |
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--Esta mentira nã presta; outra melhor hei-d` achar.-- |
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E então tomou do pau, foi-lo na terra fincar: |
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--Faço conta qu` é meu amo, aqui, em pé, a falar: |
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"Como `stá meu boi bragado?", meu amo vem perguntar. |
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Eu digo: "Nã sei do boi", e nada mais vou contar. |
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Mas esta também nã presta; outra melhor hei-d` achar. |
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Nisto duas voltas deu e tornou a começar: |
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"Como `stá meu boi bragado?" meu amo vem perguntar. |
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Eu digo: "Lo boi morreu", e nada mais vou contar. |
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Mas esta também nã presta; outra melhor hei-d` achar. |
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E mais duas voltas dando, ele torn` a começar: |
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--"Como `stá meu boi bragado?", meu amo vem perguntar. |
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Eu digo: "Cuidai, meu amo, (não será falso cuidar) |
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que boa moça me veio com seus incantos tentar. |
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Que, se do boi los chavelhos eu ali lhe fosse dar, |
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de tudo qu` eu lhe pedisse nada m` havera negar. |
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E, meu amo, dizei cá, fora-vos ela rogar |
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quantos chavelhos de boi lhe mandaríeis vós dar?" |
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Esta, sim, boa resposta, sem à verdade faltar. |
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E, pau de conto na mão, malato a caminhar. |
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Quando lo bom do malato portão do amo entrava, |
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já lo ruim do vilão já de mais cedo lá `stava. |
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E, todo el` alegria, escondido lo `sperava. |
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Seu amo, sem mal cuidar, também por ali andava, |
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e quando lo vê pergunta boi bragado como `stava. |
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Lo malato respondeu, lo vilão a escuitar: |
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--Cuidai vós, senhor meu amo, e não é falso cuidar, |
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que boa moça me veio com seus incantos tentar. |
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Que, se do boi los chavelhos eu ali lhe fosse dar, |
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de tudo qu` eu lhe pedisse nada m` havera negar. |
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E, meu amo, dizei cá, fora-vos ela rogar, |
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quantos chavelhos de boi vós lhe mandaríeis dar? |
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--Daria, mais que daria! Nã precisa perguntar. |
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Lo fidalgo, respondendo, redobrava a gargalhar. |
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Mas lo mau vilão ruim do malato praguejava; |
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a troco dos bens perdidos, com dois chavelhos ficava. |